Der Idiot

armário

O mesmo escritório de 30 anos atrás. Lembranças acumuladas nos móveis antigos, a velha máquina de escrever que fala mais sobre aquele lugar que as folhas que suas letras já machucaram.

Era inspirador e, ao mesmo tempo, assustador ver-se nua, exposta ao tempo, com todas as rachaduras e tintas que a alma já teve. Era um convite tentador ao eterno “quem sou?”

O som das batidas na máquina pareciam impressas naquele velho escritório que pertenceu ao avô. No armário, um livro de Doitojewski, em luxuosa encadernação e traduzido para o alemão. Der Idiot.

Aquele escritório antigo era seu esconderijo predileto, mas ela nunca havia observado aquele livro ali. Talvez, por não saber alemão, seus olhos inconscientemente desprezaram os grossos volumes que estavam guardados naquele armário. E talvez porque somente anos mais tarde foi ler Dostoévski, conseguiu finalmente decifrar o título do volume escrito em alemão.

Por mais de 40 anos, aquele escritório fôra o mundo de seu avô, e ela agora olhava fascinada para as histórias que existiam ali e que não teve tempo de conhecer. Então ele lia Dostoévski.

E o armário pareceu lhe responder que não só Dostoévski… Tolstoi e Goethe também.

Refletiu um pouco mais sobre o avô. O homem que sentava na mesma cadeira em que hoje ela estava sentada, e permanecia horas em silêncio, lendo, como se não houvesse amanhã. Achou seus livros ridículos, se comparados aos livros lidos pelo avô.

Uma tristeza amarga bateu em seu peito. Jamais tivera a ideia de examinar melhor as coleções que se escondiam naquele armário. Perdera um pedaço do avô que ela não sabia existir.

Sabia que ele gostava de ler, mas agora se questionava: quais folhas compuseram o homem de 1,90 metros e cachimbo pendente do vasto e bem cuidado bigode que parecia sorrir de lado?

Olhou para a estante atrás de si. Outra coleção de clássicos, desta vez traduzida para o português: Miguel de Cervantes, Emille Zolla, Moliére, Eça de Queiroz… e em um compartimento fechado, alguns livros maçônicos.

Não tinha como saber em que momento aqueles livros foram lidos e de que forma, em uma terra tão longínqua como a que vivia, o avô adquiriu os livros em alemão. Também não saberia jamais se o avô gostou deles, se eles amansaram ou extremaram o homem que conheceu. Não tinha nem mesmo como saber quais daqueles livros o avô indicaria como leitura obrigatória ou, do pouco que  o conheceu, se simplesmente não soltaria um sonoro Scheiße* para se referir a alguns exemplares.

Quem foi você, vô?

Na tentativa de descobrir nas páginas amareladas dos exemplares o homem por trás do avô, e a si mesma, resolveu que leria todos os livros que o velho escritório guardara. Com sorte, seus olhos, os do avô e os dela, se encontrariam em um ponto qualquer da leitura, e o ídolo gigante que tanto fascinou a menina, pequena demais em tamanho e entendimento para alcançar os tesouros no armário, contaria a ela um pouco de seus segredos. Talvez, em algumas dessas folhas, suas vidas se fundissem em um encontro marcado em diferentes épocas, e quem sabe ela descobriria de onde vieram os pensamentos soltos nos almoços e passeios, que navios esperou ansiosa as encomendas de livros, que urgências teve para saber do mundo, saber da vida. Talvez entendesse os silêncios contidos atrás da fumaça do cachimbo que não fumava, das tardes salvas nas xícaras de café que adorava, e dos óculos que ainda não pendiam de seu nariz. Talvez percebesse o porquê dos movimentos lentos e decididos do avô, e conseguisse retardar os dela, usando os marcadores de páginas para marcar a própria vida, determinar os passos seguintes… quem sabe, nas linhas grifadas a lápis e nas páginas com orelhas a dar-lhes importância e pausa, entendesse de que páginas se compôs, antes mesmo de ter nascido.

* Scheiße = merda, em alemão.

9 pensamentos sobre “Der Idiot

  1. Acho que seria legal ter conhecido meu avô e interessante você citar as obras em alemão, não tenho nenhuma descendência, mas facilidade para a língua, segundo uma alemã. Inclusive está aqui do lado o livro para retomada do curso, Deustch – warum nicht? Gosto dessas coincidências 🙂

    Belo texto, falta muito para conhecer sequer um pouco do meu avô, mas adorei o seu!

    Beijo e linda vida, repleta de boas lembranças!

    • Inge Lobato disse:

      Eu tive a bênção de conhecer meu avô, querido Joaquim, mas igual a você, também acho que sei pouco sobre ele, pois o conheci em uma idade mais avançada, em que quase tudo era saudade e lembrança de outros tempos, tempos estes em que eu ainda não tinha nascido ou era menina demais para aproveitar. Mas valeu muito ter usufruído da companhia dele mesmo assim. Fez enorme diferença na minha vida e influenciou muito a pessoa que sou hoje.
      Se você tem facilidade para o alemão, estuda mesmo, pois é uma língua difícil. Depois, você me ensina, porque eu ainda não aprendi nem a pronunciar meu sobrenome direito (que vergonha, kkkkk…) e olha que já convivo com ele há mais de 30 anos. Beijos e obrigada pelo carinho!! 😉

  2. Lunna Guedes disse:

    Sem dúvida alguma o melhor texto seu que eu já li. Um saber com sabor. Eu conheci mio nono e o amei por cada singularidade com a qual me brindou, mas um dia encontrei no fundo de um baú um fundo falso e lá algumas missivas escritas por ele à mim. Não sei precisar se ele esperava que eu as encontrasse antes ou depois, mas eu as encontrei e o amei ainda mais por isso. bacio

    • Inge Lobato disse:

      Grata demais pelo olhar, querida Lunna, fico feliz que tenha gostado! Meu avô foi tão intenso em seus gestos, que há lições da infância reverberando em mim somente agora. Seu nono deve ter sido muito especial também, e acredito que tivemos muita sorte de tê-los em nossas vidas. Um beijo enorme! 😉

  3. Inge, essa sua lembrança do avô virou uma crônica muito bonita carregada de informações desconhecidas por muitos. Quanta gente na atualidade só viu máquinas de escrever em fotografias, não é? E as encadernações mais antigas, todas elas “à prova de queda”. O livro podia cair que nada acontecia. Graças a essa qualidade que os antigos cultivavam com muito apreço temos os objetos deles até hoje. Infelizmente estamos na era dos descartáveis. É mais moderno. Até as pessoas são descartáveis. A única coisa reusável (com certeza) ainda é o dinheiro, não é mesmo?
    Um beijo,
    Manoel

    • Inge Lobato disse:

      Concordo, querido Manoel. Não é fácil viver numa época em que tudo é descartável, inclusive seres humanos. No tempo do meu avô, os objetos eram valorizados pela sua durabilidade e resistência. Como hoje tudo segue “tendência”, até mesmo quando algo ainda funciona é descartado por estar fora de moda. A nossa sociedade trabalha em cima do descartável porque o descartável é lucrativo. Que empresa teria lucros fabricando um objeto que dura mais de 30 anos? Por isso, criam-se novas necessidades para que as pessoas comprem mais e paguem mais por objetos que têm a mesma finalidade. E como queremos nos sentir incluídos, aceitos, cedemos aos apelos comerciais e sociais. Mas sou muito otimista quanto ao que vivemos hoje, pois creio que a total ausência de durabilidade, tanto dos objetos como das relações pessoais, irá trazer reflexão, maior equilíbrio a tudo que nos permeia. Tudo que é extremo, tende a melhorar pelo desgaste natural, e creio que as pessoas já estão sentindo o efeito do excesso de “efemeridades a viver”. Vejo muita gente reclamando de confusão, de se sentir perdido, sem rumo, justamente pelo excesso de cobranças, coisas que deve possuir, relações que tem que manter, regras a seguir, coisas para viver, provar, conhecer e fazer parte para ser aceito… tudo muito excessivo, com profundidade zero, e sem qualquer conexão com a alma. Acho que no final disso tudo, até pelo excesso de “nada”, haverá um “basta” geral, e as pessoas irão aproveitar mais do que já possuem e saberão separar o que a alma deseja daquilo que a sociedade faz acreditar que é necessário. Beijos e obrigada pelo carinho.

  4. Minha querida Ing,

    Ao degustar esse seu lindo e intenso escrito, o qual tive a honra de ser uma das primeiras a ler (e ouvir! rs…), fica fácil entender de onde brotou a essência desta menina-mulher tão incrível que você é.

    Aprendo sempre com meus pais o quanto é importante manter as nossas raízes latentes e acesas, para nunca nos esquecermos de onde viemos, da base que originou quem somos…

    E não tenho dúvidas de que esse legado eles adquiriram pelos meus avós, pessoas que também tinham muito a contar…

    Eu, infelizmente, só conheci 3 dos meus avós… Adoraria ter convivido com meu avô materno, que dizem ter sido alguém único, muito especial. Mas, de algum jeito, sinto que eu o conheço no lugar mais importante: dentro de mim.

    Novamente, digo: o seu relato clarifica ainda mais a pessoa e cronista encantadora que tenho a honra de conhecer e amar.

    Um beijo carinhoso e obrigada pela honra de compartilhar tão belas letras!

    • Inge Lobato disse:

      Querida Tatinha, obrigada pelo carinho, pelos olhos e ouvidos pacientes que sempre acolhem a mim e aos meus textos. É uma alegria imensa compartilhar com você o amor pelas palavras e pela escrita. É uma pena você não ter conhecido seu avó materno. E pena pra ele também, pois tenho absoluta certeza que ficaria muito orgulhoso do ser humano maravilhoso que é a neta. Outro enorme beijo e eu é que agradeço a honra de ter sua atenção com as minhas linhas. 😉

  5. Uma surpresa atrás da outra.
    Me admira muitíssimo a sua versatilidade, acho lindo, emocionante e encantador.
    Vamos combinar, você mesma é um conto!
    Beijo

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